Com o tempo, os romanos ampliaram seu controle e alguns reis *britânicos não desejavam guerrear mais com povos tão bem armados e disciplinados e preferiram começar a acreditar que era possível viver em paz com eles, como vizinhos em pé de igualdade. Um desses incansáveis otimistas foi Prasugatus, monarca dos fortes e ricos icenos. Para evitar que seus homens sofressem tantos maus-tratos, ele traiu a causa celta e aliou-se a Roma, por volta de 60 ou 61 d.C.
Roma não pagava traidores, como bem sabemos e, sem necessidade real de aliados na região, aproveitou a confiança de Prasugatus para despojar de surpresa os icenos de suas posses. Os legionários saquearam todo o reino, inclusive a casa do rei, espancaram sua mulher Boadicéia e estupraram suas filhas. Trata-se de uma grande afronta contra essa tribo, que quase coincide no tempo com a operação de ataque lançada pelas legiões contra a ilha de Mona – hoje conhecida como Anglessey, onde aparentemente se encontrava um dos mais importantes centros druídicos e de culto da época.
Essa iniciativa é encerrada com a degolação em massa de diversos celtas – os druidas, cuja doutrina sempre foi incompreensível para o racionalismo romano, foram os primeiros a morrer, depois a escravização dos demais e a aniquilação dos bosques sagrados.
Tudo isso vai além da simples humilhação militar. Para uma cultura que tem a religião em tão alta estima, aquilo supõe uma autêntica profanação, um golpe certeiro na coluna vertebral de sua organização social. Com relação aos druidas, negavam a eles outro papel que não o de simples chefes de rebeliões disfarçados de honráveis sacerdotes.
Acreditavam que, destruindo seu centro de reunião, seria mais fácil pacificar a ilha inteira. Os druidas eram os únicos homens preparados para ensinar, perpetuar e aplicar de forma adequada a sua religião, algo que dava sentido à existência do celta. Tentar extirpar a fé de sua raiz era condenar todos eles a algo muito pior do que a morte.
Ao coincidirem ambas as notícias – a destruição de Mona e a traição aos icenos, a reação dos britânicos foi realmente selvagem. A grande rebelião organizada em seguida terminou em um autêntico derramamento de sangue nos territórios sob controle romano e à frente da mesma, foi colocada Boadicéia ou Boudicca, a vitoriosa, seu verdadeiro nome em iceni.
Os icenos lideraram o levante, já que, ao fim de tudo, continuavam sendo uma das tribos de maior peso na Grã-Bretanha e tinham sede de vingança. Frente à incapacidade demonstrada por seu marido, Boudicca reclamou e obteve seu direito de liderar o exército – algo impensável entre os romanos; o patriarcado machista do qual o elemento feminino ocidental suportou por tanto tempo se deve em termos à idéia greco-romana do mundo e ao pensamento semita a respeito.
Como ocorreu em outras ocasiões, a visão da enfurecida Boudicca guerreira é impressionante para amigos e inimigos. Ela é descrita como uma mulher alta, de compleição física forte, dotada de uma vasta cabeleira vermelha e capaz de mudar seu rosto com gestos e contorções típicos de qualquer guerreiro celta. A isso, somam-se seu poder para reunir um exército, sua audácia e sua decisão.
Todos os povos britânicos levantaram-se em armas para segui-la. Os fatos mais destacáveis dessa reunião foram a destruição de Camulodunum, que havia sido reconvertida em cidade romana, e a fuga do promotor Decânio, obrigado a abandonar precipitadamente a ilha. Outras cidades como Verulamium (atual St. Albans) e Londinium (atual Londres) também caíram em suas mãos e nunca houve nenhum tipo de abrigo para os invasores.
Pode-se dizer que os britânicos despacharam com gosto todos aqueles que caíram em suas mãos e também os que os ajudaram. Devolveram olho por olho cada ato de crueldade gratuita que sofreram, destruíram todos os fortes romanos que encontraram e festejaram sobre suas ruínas. Porém, como de costume, a rebelião terminou mal.
O chefe romano Suetônio Paulino conseguiu agrupar todos os que escaparam e com eles organizou um exército de aproximadamente 10.000 homens. Estrategista de carreira, Paulino escolheu a tática, o terreno e o momento no qual enfrentaria Boudicca. Quando seus contingentes entraram em choque, o profissionalismo militar venceu a batalha contra o coração e a vitória romana converteu-se em carnificina.
Boudicca envenenou-se antes de ser capturada. A morte da Rainha Vermelha não equivaleu à pacificação britânica. Digamos que seu sacrifício serviu apenas para estabilizar a situação. Os celtas compreenderam que seria quase impossível expulsar os romanos, mas estes também entenderam que seria mais impossível ainda, se impor como ocorreu em todo o continente.
Isso desembocou em uma frágil paz que nenhum dos dois grupos rompeu antes da coroação de Vespasiano como imperador em Roma. Mas ele só estenderia a colonização até a fronteira entre britânicos e pictos. E seus herdeiros, Adriano e Antonino Pio, se viram obrigados a levantar altos muros de costa a costa para tentar conter as incursões de pictos e exilados britânicos na Caledônia, antiga Escócia.
Como na Grande Muralha da China, as fortalezas não serviam para muita coisa além de demarcar território. Ao longo dos anos, a “pax romana” acabou sendo adotada mais por inércia do que por obrigação. No fim das contas, os romanos são mais organizados e a ordem gera certos graus de comodidade e falsa segurança, que não deixam de parecer apetecíveis a todos.
Isso permite a romanização dos nobres celtas, que adotam os hábitos dos invasores que vivem nos vilarejos, bem como o latim como língua para se destacar no meio. O povo continua falando seu idioma e praticando seus costumes. As cidades fundadas pelos romanos na ilha foram menos numerosas e importantes do que as estabelecidas no continente, tudo isso, graças à força guerreira e impetuosa de Boudicca – a Rainha Vermelha.
*Há erros de tradução no livro, na página 110 – onde se lê bretões o correto é britônicos. “A confusão conceitual entre Bretanha (Brittany), Grã-Bretanha (Britain), bretão (Breton), britônico (Briton) e britânico (British) transparece ocasionalmente. Boudicca não foi uma rainha bretã, mas britônica ou britânica quando muito.” Explicação do pesquisador e linguista Bellouesus Isarnos. Texto atualizado em 12/07/2021.
Rowena A. Senėwėen ®
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Fonte bibliográfica:
Adaptação: Boudicca, a Vingadora
Os Mitos Celtas de Pedro Pablo G. May
Imagem de Luca Tarlazzi
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